Rio Paraguai, tradição e inovação no fazer culinário
09/03/12 16:53Por Márcia Rolon – Instituto Homem Pantaneiro e Moinho Cultural
Em seu “Livro Sobre Nada”, nosso poeta Corumbaense, Manoel de Barros, diz que tudo que não invento é falso, que a arte não tem pensa: o olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo. Tocar o trigo, a erva aromática, o peixe que mora no rio Paraguai e transformá-lo em uma delícia pantaneira, é uma maneira de transver o mundo. Ser o criador de uma nova receita é uma maneira de transver o mundo. Recriar um prato tradicional de Corumbá, como o “peixe a urucum” é uma maneira de tornar verdadeiramente seu aquele novo prato inspirado no paladar que mora no imaginário de quem vive nesta cidade.
Todos os dias, quando chego ao Moinho Cultural, sou recebida por pequenos sorrisos e abraços apertados de pessoinhas iluminadas que fazem parte desse projeto sociocultural. Porém, em uma manhã, vivenciei uma nova sensação. Encontrei homens experientes de barcos-hotéis que há muitos anos deslizam sobre o rio Paraguai alimentando turistas pescadores que nos visitam. Encontrei cozinheiros. Por entre eles surgiam os conhecidos sorrisos emaranhados ao grave “Bom dia”. Nesse momento, me perguntei: o que faz um cozinheiro com mais de 20 anos de experiência buscar a Vila do Conhecimento no Moinho Cultural para participar de um curso de gastronomia? Há algum tempo trocamos experiências e compartilhamos o “transver” com homens e mulheres da comunidade fronteiriça e colhemos sorrisos gratificantes de quem conquistou um espaço novo na sociedade e em seu cotidiano. Mas, para mim, foi uma grande surpresa encontrar aqueles reconhecidos cozinheiros, todos na calçada do Moinho que fica de braços abertos para o tão conhecido rio deles próprios. Era o primeiro dia do curso Delícias da Gastronomia Regional do Mato Grosso do Sul, ministrado pela instrutora e artista da culinária pantaneira Lidia Leite.
A pergunta pulsou novamente: “O que traz esse cozinheiro?” Talvez ele esteja buscando uma nova maneira de ver o seu próprio mundo culinário, uma nova maneira que já vive do lado de dentro de seu fazer diário – e que, no entanto, precisa do novo para que a essência seja despertada. Talvez ele esteja aqui sem estar por inteiro. Talvez ele queira vivenciar e ser multiplicador de seu competente fazer. Talvez ele queira ser ele mesmo, cozinheiro, que nesse curso busca transver seu fazer. Talvez e muitos outros talvez… Não importa o que o fez estar na nossa Vila do Conhecimento, o que importa é que ele veio e que, no transcorrer do fazer, vivenciou a cultura corumbaense com todas as suas mestiçagens. E criou sua marca, sua receita, tornou-se intérprete-criador de si mesmo. Esse homem retornou para seu deslizar aquático nos barcos-hotéis pantaneiros com a segurança de ser único. Não porque nosso fazer é único, mas porque o leva a reconhecer-se como agente cultural, como gente que inova e “re-nova” nossa tradição pantaneira.
Isso me toca e me leva a transver minha cidade. Corumbá foi fundada em 1778, e planejada como forte protegido por muralhas. Na atualidade, ainda carrega a história dos tempos áureos em seus casarões denominados, pelo Ministério da Cultura, como “Conjunto Histórico Arquitetônico e Paisagístico”. Cidade quente e úmida, Corumbá exala cultura. Porém, ainda não possuímos um plano de turismo que valorize o turismo histórico-cultural. Possuímos equipamentos de alto nível que beiram o rio Paraguai e carregam memórias de séculos passados, e um grande potencial para a implantação de novos equipamentos que elevarão nossa economia e certamente irão reviver esses casarões. Quando esse momento chegar, homens e mulheres, cozinheiros ou não, poderão atracar nossa cultura no Porto Geral Corumbaense e alimentar transeuntes de nossos rios e do mundo com delícias pantaneiras.
Como empreendedora social, sou movida pelo sonho. Caminho na mobilização de crianças e jovens, indivíduos locais e fronteiriços para que conquistem liberdades e contribuam com o transver. Acredito que, ao entrarmos nesse movimento, as muralhas serão derrubadas e então iremos mostrar ao mundo a essência cultural de cada um que existe em todos nós, e nossa cultura será vivenciada em um canto, uma dança, uma receita, uma fala, um fazer, ou simplesmente em um olhar. Mas que este seja verdadeiro e que nós possamos nos reconhecer como parte da nossa própria história.