Anemia falciforme, um problema nosso
18/06/12 06:59Por Berenice Kikuchi
O reconhecimento pela ONU (Organização das Nações Unidas), em 2009, estabelecendo 19 de junho como Dia Internacional da Anemia Falciforme é o resultado da participação, da mobilização e das ações encaminhadas pelas organizações sociais de amigos, familiares e pessoas com a enfermidade nos países da diáspora, no Continente Africano e na Europa.
Uma enfermidade clinicamente grave e com alto índice de mortalidade que ceifa precocemente milhares de vida de crianças menores de 5 anos, nos países da diáspora, e de forma mais perversa, no continente africano, onde, das 180 mil crianças que nascem anualmente com a doença, 50% morrem antes de completarem 1 ano de vida.
Meu processo para reverter este quadro iniciou-se em 1993, ao conhecer uma criança com a enfermidade e diagnóstico recente da doença. Mudou minha vida, como mãe, profissional de saúde e mulher negra, cuja meta foi incidir nas políticas públicas no Brasil e no mundo.
Uma trajetória que se inicia timidamente em um bairro da periferia da zona leste da cidade de São Paulo e culmina em políticas e propostas, tanto no âmbito nacional como internacional.
No entanto, é necessário mais que um dia de mobilização, e sim anos para mudar a mente e os corações dos gestores, técnicos e políticos para que, de fato, a atenção qualificada chegue às pessoas com a enfermidade, familiares, em sua maioria, negros e pobres.
Para consolidar essa construção social de ir do individual para o coletivo, foi importante ter concorrido e ganho a bolsa como pesquisadora da Fundação Mac Arthur, posteriormente, como fellow Ashoka e, atualmente, integrante da Rede Folha de Empreendedores Socioambientais. Também foi fundamental o apoio do Sesc-SP, para que pudesse mobilizar recursos estratégicos e logísticos para manter um contínuo de iniciativas e ações nos movimentos sociais, nos legisladores, gestores e técnicos nacionais e internacionais.
Como primeira iniciativa, ter elaborado a primeira cartilha a tratar do assunto e sua distribuição de forma massiva, em todo o território nacional. A cartilha “Anemia Falciforme – um Problema Nosso” neste ano completa 20 anos. Incorporou uma linguagem que, apropriada pelos movimentos sociais, tornou-se importante instrumento de informação e mobilização por políticas equânimes no SUS.
Daí ter atuado nos legisladores paulistas, resultando na primeira legislação brasileira a contemplar essa parcela da população nas políticas públicas. A Lei nº 12.352/97 para o Município de São Paulo tornou-se referência para os movimentos sociais negros e legisladores, sendo sancionada em várias cidades e Estados da federação, onde participei como debatedora.
Para dar respaldo legal às iniciativas junto ao poder público, constituí a Associação de Anemia Falciforme do Estado de São Paulo, a primeira organização focada em incidir nas políticas públicas de Estado. Os conhecimentos adquiridos no convívio com as pessoas com a enfermidade, sobretudo crianças e seus familiares, resultaram no primeiro livro a tratar especificamente desse tema com uma visão técnico-científica e cultural, situando a criança e o adolescente no centro do cuidar tanto no sistema de saúde como de educação: “Anemia Falciforme – Manual para Agentes de Saúde e Educação”.
Em 2001, com apoio da Ashoka Empreendedores Sociais e recursos próprios, apresentei-me no setor de políticas públicas da Pan América Health Organization (PAHO), em Washington-DC, escritório regional da Organização Mundial de Saúde, a proposta de que a Anemia Falciforme fosse incluída como um problema de saúde pública pela Organização Mundial de Saúde.
Desse contato, veio a proposta de ficar durante três meses nos Estados Unidos como consultora na formulação de uma proposta de política pública para a América Latina e o Caribe. Lá, tive oportunidade de conhecer associações, instituições de pesquisa e o sistema de assistência às pessoas com anemia falciforme e de realizar palestra no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), alertando para o problema nas Américas.
A partir de 2004, participei no Ministério da Saúde da equipe de assessores técnicos e, em 2005, contribui na formulação e redação do que veio a ser aprovado pelo ministro da saúde do período como portaria GM nº 1.391/2005, que institui a Política de Atenção Integral às pessoas com Doença Falciforme e outras Hemoglobinopatias no SUS.
As minhas ações apoiadas pela PAHO e também da Organização Pan-Americana de Saúde/sede Brasil continuaram: participação em seminários no Uruguai, Venezuela, Honduras, Palatino, EUA, e organização no Brasil do primeiro curso regional de anemia falciforme, sempre levando a necessidade de inclusão da doença como um problema de saúde pública.
Em 2005, ganhei o Prêmio Objetivo de Desenvolvimento do Milênio, oferecido pela Presidência da República, como autora da melhor prática para a redução da mortalidade infantil por anemia falciforme.
Em 2006, minhas iniciativas na PAHO somaram-se às recomendações das organizações dos países africanos e dos colonizadores europeus, com alto contingente de imigrantes africanos.
A esse conjunto de documentos e recomendações demandadas por mim somam-se as de pesquisadores, gestores e técnicos de órgãos internacionais no âmbito das doenças falciformes que culminaram, em 25 de janeiro de 2006, na Resolução nº 59 da Organização Mundial de Saúde sobre Drepanocitose (o mesmo que doença falciforme), uma séria de recomendações aos Estados Membros, assim como ao diretor geral da OMS.
Dentre elas, destaco um dia mundial de saúde focado na mobilização e conscientização a respeito da morbidade e mortalidade em nível mundial, especialmente nos países em desenvolvimento, assim como o sofrimento dos pacientes e familiares afetados pela doença, que a anemia falciforme seja reconhecida oficialmente como um problema de saúde pública.
O encaminhamento na ONU para estabelecer o Dia Internacional da Anemia Falciforme foi realizado pelas organizações africanas de combate à drepanocitose e contou com o apoio das organizações de doença falciforme brasileira, por meio da Federação Nacional de Pessoas com Doença Falciforme (Fenafal).
O empreendedor social é uma pessoa visionária que pensa para além do seu tempo, por isso deixa seu nome registrado na história.